Economia circular como alternativa para a mitigação do racismo ambiental
Relatório realizado como parte do Processo Trainee 2025.2, no qual explica-se e estabelece-se a relação entre temas fundamentais na discussão contemporânea de sustentabilidade: racismo ambiental, economia circular e sustentabilidade nas cidades.
Antônia Horta, Lucas Colturatto e Mariana Ragazzi
11/4/20258 min read


O fenômeno do racismo ambiental configura-se como uma das expressões mais perversas das desigualdades estruturais presentes na sociedade contemporânea.
No Brasil, suas consequências recaem de forma desproporcional sobre populações vulnerabilizadas, majoritariamente negras e pardas que habitam regiões periféricas, marcadas pela precariedade da infraestrutura urbana e pela ausência de acesso adequado ao saneamento básico.
Essas comunidades, localizadas em áreas de risco socioambiental, são as mais afetadas por desastres ecológicos, inundações, contaminações e outras tragédias que resultam do modelo desigual de desenvolvimento urbano e ambiental. Essa realidade escancara uma lógica de exclusão sistemática, evidenciando uma forma concreta de racismo ambiental.
O conceito de racismo ambiental foi criado na década de 1980 por Benjamin Franklin Chavis Jr., ativista e líder dos direitos civis nos Estados Unidos. Ele utilizou essa expressão para denunciar a instalação deliberada de aterros de resíduos tóxicos em comunidades predominantemente negras no Condado de Warren, na Carolina do Norte.
A partir desse marco histórico, o conceito foi ampliado pelo sociólogo Robert Bullard, que passou a utilizá-lo para descrever o modo como populações vulneráveis, especialmente aquelas de pele preta e indígenas, sofrem, de forma desproporcional, os impactos negativos das políticas e práticas ambientais. Essa desigualdade decorre, principalmente, da ausência de poder político e econômico dessas comunidades para se protegerem, reivindicarem seus direitos e influenciarem as decisões que afetam diretamente suas vidas e seus territórios.
Economia circular como alternativa para a mitigação do racismo ambiental
O racismo ambiental manifesta-se de diversas formas: na destinação de resíduos tóxicos a áreas habitadas por populações pobres e racializadas; na omissão do poder público quanto à proteção ambiental dessas regiões; na carência de infraestrutura básica; e na exclusão dessas comunidades dos processos decisórios sobre a gestão dos recursos naturais e urbanos. Esse padrão de injustiça, presente no Brasil e em outros países, como os do Caribe, reflete um modelo urbano historicamente excludente que marginaliza populações ao negar moradia digna e infraestrutura adequada, expondo-as a riscos ambientais. Assim, o racismo ambiental deve ser reconhecido como um problema estrutural, que entrelaça desigualdade racial, pobreza e degradação ambiental, sendo necessária justiça social e racial como condição para a efetiva justiça ambiental.
Ademais, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma ferramenta importante para orientar o planejamento e a implementação de políticas públicas, que servem como guia para a efetiva promoção de uma economia circular inclusiva (SANTOS; BURGOS, 2025). O planejamento e as políticas municipais devem estar alinhados com os ODS, especialmente no combate às mudanças climáticas (ODS 13) e na redução das desigualdades sociais e de gênero (ODS 10 e ODS 5). A incorporação do conceito de economia circular estimula um desenvolvimento de baixo carbono e regenerativo, essencial para integrar abordagens sociais no setor de resíduos sólidos urbanos (RSU) a nível local. Além disso, os esforços para garantir a igualdade de gênero (ODS 5) apresentam sinergias com outros objetivos, como erradicação da pobreza (ODS 1), promoção de cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11) e redução das desigualdades (ODS 10). Assim, uma gestão de resíduos guiada pelos ODS e por uma abordagem interseccional contribui para uma transição justa, verde e inclusiva, fortalecendo simultaneamente a resiliência climática das cidades.
A economia circular, por sua vez, é um conceito que surge como alternativa ao modelo linear tradicional de produção e consumo, baseado em “extrair, produzir, usar e descartar”, que resultou em graves impactos ambientais devido à exploração predatória dos recursos naturais e geração crescente de resíduos. Em contraste, a economia circular propõe um sistema fechado e cíclico, no qual os recursos são mantidos em uso pelo maior tempo possível, por meio de práticas como reutilização, reciclagem, remanufatura, logística reversa e prolongamento do ciclo de vida dos produtos. Seu objetivo é não apenas reduzir a extração de matérias-primas e a poluição, mas também restaurar os danos ambientais, criando uma economia que concilie prosperidade econômica, qualidade ambiental e justiça social.
Esse conceito, tem origem em autores como Kenneth Boulding (1966), que já havia antecipado a ideia ao sugerir que a humanidade deveria encontrar seu lugar em um sistema ecológico de reprodução contínua. Além disso, ele foi fortemente impulsionado pela China a partir da década de 1990 com políticas de regulamentação voltadas para controle de resíduos e aproveitamento mais eficiente dos recursos. Tendo em vista isso, é importante ressaltar o papel central de políticas públicas eficazes, bem como de eco inovação, para a introdução de elementos circulares e transição para um sistema produtivo mais sustentável.
Fundamentação teórica
A gestão de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) no Brasil revela profundas interseções entre desigualdade social, gênero e racismo ambiental. As populações periféricas, majoritariamente negras e pardas, sofrem de forma desproporcional os impactos da precariedade da infraestrutura urbana, da ausência de saneamento básico e da exposição a áreas de risco socioambiental. Esse fenômeno manifesta-se na destinação de resíduos tóxicos e na negligência do poder público quanto à proteção ambiental dessas regiões, criando um ciclo contínuo de vulnerabilidade e exclusão. No setor de RSU, essa desigualdade é refletida na condição precária dos catadores, responsáveis por cerca de 90% dos resíduos reciclados, a maioria negros, mulheres e residentes em comunidades periféricas.
Ao integrar a abordagem interseccional, é possível reconhecer que crises sociais e ambientais afetam diferentes grupos de maneiras divergentes, destacando a necessidade de políticas públicas que articulem justiça ambiental, social e de gênero simultaneamente. A economia circular, nesse contexto, oferece um modelo de produção e consumo regenerativo capaz de promover reutilização, reciclagem e regeneração, mas sua implementação exige que o planejamento municipal considere estas dimensões sociais para garantir que a transição seja inclusiva e equitativa (SANTOS; BURGOS, 2025).
A implementação de uma economia circular inclusiva requer estratégias que articulem múltiplos setores e atores da sociedade, promovendo tanto o desenvolvimento de baixo carbono quanto a redução das desigualdades estruturais. A integração de abordagens de gênero e raça permite reconhecer e valorizar o trabalho dos catadores, incentivando a criação de empregos dignos, segurança social e liderança de mulheres e grupos vulneráveis no setor de resíduos. Além disso, a articulação com setores como agricultura e indústria fortalece a gestão de resíduos e amplia o impacto da economia circular para além da reciclagem, promovendo práticas regenerativas e a redução de emissões. O alinhamento das políticas municipais com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em especial os ODS 5, 10 e 13, fortalece a justiça interseccional e a resiliência climática das cidades, garantindo que o modelo circular não apenas contribua para a sustentabilidade ambiental, mas também para a redução das desigualdades sociais e raciais. Dessa forma, a economia circular se apresenta como uma oportunidade estratégica para enfrentar o racismo ambiental, integrar perspectivas de gênero e classe e transformar a gestão de resíduos em um vetor de desenvolvimento inclusivo, justo e regenerativo.
Um caminho de aplicação dos objetivos e práticas da economia circular no contexto brasileiro seria através da reciclagem. O cenário atual após a pandemia de Covid-19 é marcado por crises econômicas, sociais e sanitárias, que contribuem diretamente para um aumento do desemprego e da informalidade do trabalho, que atinge 40% dos trabalhadores brasileiros. Diante dessa conjuntura, a indústria da reciclagem surge como setor de grande potencial econômico e social. Apesar do Brasil reciclar apenas 3% dos resíduos que produz, esse número já movimenta bilhões de reais por ano, gerando emprego, renda e benefícios ambientais. Dados mostram que cooperativas e associações de catadores evitam custos elevados para os municípios, que teriam que arcar com a coleta seletiva. Exemplos internacionais, como a cidade de Kamikatsu (Japão), evidenciam que modelos de “desperdício zero” podem gerar economia e reduzir impactos ambientais. No Brasil, o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) estima que cerca de 800 mil pessoas sobrevivem da catação, sendo aproximadamente 70% mulheres.
Porém, a indústria da reciclagem também apresenta adversidades. Apesar de sua relevância ambiental e social, o trabalho de catadores é desvalorizado e marginalizado. Como não trabalham para setores exclusivos e sim para diversas cadeias produtivas (como papel, plástico, metal, vidro), sua atividade se torna difusa e sem respaldo das indústrias que se beneficiam dela. As catadoras, especialmente, enfrentam ainda mais obstáculos devido à desigualdade de gênero e raça, pois a maioria das mulheres catadoras se identificam como pretas ou pardas. Contudo, a realidade de catadoras como aquelas da Associação AMAR revela que, embora marcada pela informalidade e invisibilidade, a reciclagem tem se tornado um espaço de resistência, geração de renda e protagonismo das mulheres, especialmente em associações e cooperativas como a mencionada, que vêm conquistando reconhecimento e ampliando sua presença na indústria global.
Tendo isso em vista, a indústria da reciclagem pode ser uma alternativa tanto para enfrentar problemas sociais (desemprego, precarização, desigualdade de gênero e raça) quanto para lidar com a crise ambiental global. Ela contribui para a geração de renda, a classificação de resíduos e a proteção ambiental, a mitigação dos efeitos negativos do excesso de produção e descarte de lixo, além de promover a resistência de populações marginalizadas. Portanto, está diretamente relacionada à economia circular, pois possibilita que recursos que antes seriam descartados possam se reintegrar à cadeia produtiva. Ademais, a reciclagem pode contribuir para o atingimento do Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, já que promove o combate a mudanças climáticas (ODS 13), cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11) e a a igualdade de gênero (ODS 5) .
Em síntese, a gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil revela profundas desigualdades marcadas por raça, gênero e classe, exigindo respostas que articulem justiça ambiental, social e de gênero. O racismo ambiental, que impacta desproporcionalmente as populações periféricas e racializadas, torna urgente a adoção de políticas públicas inclusivas e interseccionais. Nesse contexto, a economia circular surge como alternativa estratégica ao modelo linear, ao promover a regeneração de recursos, o prolongamento da vida útil dos produtos e a valorização do trabalho de catadores e catadoras, majoritariamente mulheres negras, que sustentam grande parte da reciclagem no país.
É imprescindível que Estado, sociedade civil e setor privado atuem de forma articulada, garantindo a inclusão das populações historicamente marginalizadas e ampliando a resiliência socioambiental dos territórios vulneráveis. Alinhar essa transição aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente os ODS 5, 11 e 13, significa transformar a gestão de resíduos em um vetor de desenvolvimento justo, inclusivo e regenerativo, capaz de enfrentar as desigualdades estruturais e construir um modelo de cidade mais equitativo e sustentável.


Feito por Fernando Castro/Jornal da USP
Referências
Bibliográficas
BRASIL. Secretaria de Comunicação Social. O que é racismo ambiental e de que forma ele impacta populações mais vulneráveis. Portal GOV.BR, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/fatos/brasil-contra-fake/noticias/2024/o-que-e-racismo-ambiental-e-de-que-forma-impacta-populacoes-mais-vulneraveis. Acesso em: 31 out. 2025. Serviços e Informações do Brasil
Greenpeace Brasil. Quem mais sofre as consequências da crise do clima nas cidades? Blog Greenpeace Brasil, 1 set. 2022. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/quem-mais-sofre-as-consequencias-da-crise-do-clima-nas-cidades/. Acesso em: 31 out. 2025.
SANTOS, Priscilla; BURGOS, Rayana. Abordagens sociais e de gênero para uma economia circular inclusiva. Disponível em: https://redus-homolog.s3.amazonaws.com/initiative_library_items/clkb9qyuz001f2jypdf80bvcl-Economia%20circular%20inclusiva.pdf.
